As pequenas coisas - E eu ia ficar sem vocês




{Pouco antes do Francisco nascer, encomendamos pizza para o jantar.
Ainda era férias, os miúdos iam para a cama mais tarde e estava uma noite agradável, sem pressas e sem horas. Fizemos um picnic. Aliás já tinha feito algo semelhante há uns anos atrás mas por algum motivo nunca mais tinhamos repetido. 

O João trouxe uma toalha de mesa e colocamos no chão, por cima do tapete. O pai trouxe as caixas de pizza já fatiada, os copos, guardanapos, e Coca-Cola para mim. Aconcheguei-me nas almofadas o melhor que pude, e eles sentaram-se à minha volta. Fizemos um picnic de pizza, num sábado à noite, no chão da sala. Eles adoraram, e o João ainda se lembrava do último picnic, com na selva, e com ruídos de dinossauros. }



Disseram-me que talvez teria que ir novamente ao bloco, naquela manhã, e deixaram-me sozinha naquela espécie de quarto, com fios e as máquinas e aqueles piiis piiiis constantes. Porta de vidro meia aberta e eu sabia que me viam. Olhei para o lado para não os ver, nem os outros que estavam deitados  do outro lado do corredor, quis muito ficar invisível. Lembrei-me do parto na quinta-feira de manhã, e de finalmente ver a carinha dele, encostado à minha bochecha, senti a pele dele quentinha. Lembrei-me de entrar novamente no bloco nessa mesma tarde, tudo à pressa, e sem tempo para pensar. Lembrei-me que não tinha pensado neles nem em ninguém, nem tinha tido tempo, com toda aquela confusão e agitação, e tanta gente à minha volta, e as dores. Aquelas dores, que não me deixaram pensar em mais nada, que rasgavam por dentro da pele.

Mas nesse sábado de manhã bem cedo, era diferente, sozinha, com o silêncio dos piiisss constantes, tinha tempo para pensar. Pensei nele, que ainda não o tinha visto bem, só o sentido, e que não se iria lembrar de mim. Nunca. Lembrei-me do João, e sabia que ele ainda poderia se lembrar de algumas coisas comigo. Não tudo, talvez só as mais pequenas. Talvez das nossas rotinas, dos nossos bolos e cozinhados, do boa-noite, das manhãs na conversa, e de dançarmos com a música muito alta.  Depois lembrei-me do Tomás, e sabia que pouco ou quase nada iria se lembrar. Tentei não chorar, afinal de contas não estava sozinha, mas nao consegui. Gordas e abundantes, as lágrimas corriam pela face abaixo e em cada uma só pensava que eles não se iriam lembrar de mim, ficava esquecida, apenas visível em fotografias ( e por quanto tempo ??). Deixaria de existir. Deixaria de ser. 
Rezei para que ao menos se lembrase daquele picnic, na sala, à noite.

Lembrei-me dele, e do que ainda não tínhamos feito, nem dito, e das vezes que me chateio sem necessidade, e das vezes que me zango por coisas tão insignificantes. Pensei nele, com os 3, em casa sozinhos, sem mim. Pensei na vida dele, uns anos à frente, já refeita. Pensei neles os 3, sem mim, só com as poucas memórias que o mais velho poderia contar aos mais novos. Memórias que se dissipariam com o tempo. E os meus pais e irmãos? Saudades, muitas e grandes. 

Tive medo, tive tanto medo, não por mim, não por o que me poderia acontecer, mas por ser esquecida por eles, por não os ver crescer, nem os acompanhar. 
Chorei por tudo aquilo que tive e especialmente por aquilo que não iria ter, nem dar. 


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